Saiu
da plataforma de desembarque um tanto sonolenta. O ônibus na estrada sempre agia
como uma espécie de sonífero em seu corpo. A volta da casa dos primos não seria
diferente. Ainda mais com tanta energia gasta no final de semana que passara com
pessoas que tanto gostava. Sentia-se revigorada para voltar ao trabalho na
segunda-feira.
Era
noite de domingo. “Será que os ônibus urbanos estão de uma em uma hora ainda?”,
pensou. Saiu da rodoviária e raciocinou: se pegasse dois ônibus, um até em
frente da igreja e, de lá para a sua casa, não teria de andar muito nas ruas àquela
hora. “Farei isso mesmo!”
Seguiu
para o ponto. “Motorista, este ônibus vai até a igreja São Sebastião?”, “Vai
sim, moça! Agorinha mesmo! Logo eu saio!”, “Obrigada!”.
Subiu
no carro e sentou-se atrás do banco do motorista que, para proteção dele, tinha
um vidro transparente o separando do resto dos passageiros.
“Espero
que assim que descer, o meu ônibus não demore a passar. Quero minha cama!”,
falou de si para si enquanto colocava sua mochila com estampa do exército no
chão, estava pesada com as roupas do fim de semana. A garota estava realmente
precisava de sua cama.
Assim
que se acomodou um homem de cara fechada, alto e largo entrou no ônibus.Olhou a
moça. Subiu os olhos de seus pés à cabeça. Encarou e sorriu! Um leve tremor
seguido de um grande desconforto atingiu a pobre garota. “Será que o conheço?”,
cismou, mas logo deixou de lado a ideia ao perceber que o homem se dirigia
agora ao motorista.
O
sujeito passou a roleta e foi sentar-se atrás da garota.
“Nossa,
que demora! O motorista disse que seria rápido! Será que demora mais?”.
Percebeu
um olhar insistente em sua direção. Olhou no vidro de proteção do motorista e
viu o homem olhando-a de uma forma muito estranha. Ele a mirava. Um olhar de intimidar,
dar medo, desconforto, mal estar. Sentiu enjoo. Sentiu que um pedaço de era arrancado.
Tudo seguido de um sorriso mal feito, de canto de boca.
Desviou
a atenção para a rua. Encostou-se no banco deixando todo o seu peso acomodar-se
no macio Ela olhava pela janela quando sentiu um ar quente em seu pescoço.
Olhou para trás e... Estranho! O sujeito olhava a janela. “Ele acomodou-se tão
rápido. Estou ficando louca?”. Teve medo.
“Oi
motorista! Hoje o dia foi cansativo, hein?!”, disse uma senhora ao subir as
escadas do ônibus com dificuldade. A idade, certamente. Sentou-se do outro lado
do corredor, acomodou-se, sorriu! Estava finalmente a caminho de casa.
O
motor ronca e o carro começa a andar.
A
moça olhou mais uma vez pelo vidro de proteção do motorista e viu o mesmo olhar
a encarar os seus. Gritar? Por que se ele não fizera nada de mal, efetivamente?
Mas ela sentia medo, enjoos.
Subindo
a rua do centro da cidade, sentiu que o sinal vermelho nunca demorou tanto em
sua vida. “Gente, por que não fui a pé?”, refletiu consigo mesma.
“O
ponto está chegando, moça! É o próximo”, gritou o motorista, despertando a
garota de seus medos e dando a ela esperança. “Obrigada, senhor!”.
Levantou-se
com pressa. Pegou a mochila e a colocou nas costas como se estivesse leve. De
onde surgira aquela força? Agarrou-se ao cano de segurança do carro, deu sinal
e esperava impaciente o ponto chegar.
“Motorista,
meu bem, obrigada! Desço junto com a moçinha aqui!”, disse a senhora que
entrara depois do sujeito de olhos ameaçadores.
“Meu
bem” – sussurrou a senhora de idade – “Não vou descer junto contigo. Apenas vim
te ajudar. Olhe atrás de você”. A garota olhou e novamente viu o sujeito que
lhe dava enjoos e, por sinal, ele lhe causara outro com o olhar ameaçador e o
sorriso mal feito, de canto de boca. “Ele não é bom! Sinto isso! Grite ao
motorista que viu o carro do seu pai na esquina, antes do ponto mesmo, e peça
que ele abra a porta para que você possa sair antes. Tentarei segurar o homem
aqui. Grave bem o rosto dele e, qualquer coisa, fuja o mais rápido que puder.
Vá! Grite!”
Sem
perder tempo a moça obedeceu a senhora: “Motorista, meu pai está ali na
esquina! Abra para mim, por favor?”, “Sem problemas moça, que sorte, hein?!”,
retrucou.
Desceu
rapidamente, creio que até pulou o último degrau direito para a calçada. Passou
atrás do ônibus e correu atravessando a rua. Só parou quando percebeu que o
sinal abriu, o ônibus seguiu e ninguém a seguia. Só então, respirou.
Sentou-se
na calçada mesmo e chorou. O estômago queria jogar para fora toda a sensação
ruim daquele péssimo encontro. Teve a sensação de que era um pedaço de carne e seria
devorada a qualquer momento, crua. As pernas bambeavam.
Viu
uma luz forte. Seu ônibus. O que a levaria direto para casa. Deu sinal, ele
parou, ela subiu. Motorista que conhecia e passageiros com caras mais familiares.
Sentou-se no fundo. Estava mais perto de casa. Mais longe do olhar intimidador
e do sorriso mal feito, de canto de boca.
Daquele
dia em diante, em seus piores pesadelos, encontrava o maldito olhar e o sorriso
mal feito, aquele de canto de boca, que lhe dava enjoos.
Crônica: Priscila Garcia
Imagem retirada da internet