terça-feira, 23 de setembro de 2014

Saiu da plataforma de desembarque um tanto sonolenta

Saiu da plataforma de desembarque um tanto sonolenta. O ônibus na estrada sempre agia como uma espécie de sonífero em seu corpo. A volta da casa dos primos não seria diferente. Ainda mais com tanta energia gasta no final de semana que passara com pessoas que tanto gostava. Sentia-se revigorada para voltar ao trabalho na segunda-feira.
Era noite de domingo. “Será que os ônibus urbanos estão de uma em uma hora ainda?”, pensou. Saiu da rodoviária e raciocinou: se pegasse dois ônibus, um até em frente da igreja e, de lá para a sua casa, não teria de andar muito nas ruas àquela hora. “Farei isso mesmo!”
Seguiu para o ponto. “Motorista, este ônibus vai até a igreja São Sebastião?”, “Vai sim, moça! Agorinha mesmo! Logo eu saio!”, “Obrigada!”.
Subiu no carro e sentou-se atrás do banco do motorista que, para proteção dele, tinha um vidro transparente o separando do resto dos passageiros.
“Espero que assim que descer, o meu ônibus não demore a passar. Quero minha cama!”, falou de si para si enquanto colocava sua mochila com estampa do exército no chão, estava pesada com as roupas do fim de semana. A garota estava realmente precisava de sua cama.
Assim que se acomodou um homem de cara fechada, alto e largo entrou no ônibus.Olhou a moça. Subiu os olhos de seus pés à cabeça. Encarou e sorriu! Um leve tremor seguido de um grande desconforto atingiu a pobre garota. “Será que o conheço?”, cismou, mas logo deixou de lado a ideia ao perceber que o homem se dirigia agora ao motorista.
O sujeito passou a roleta e foi sentar-se atrás da garota.
“Nossa, que demora! O motorista disse que seria rápido! Será que demora mais?”.
Percebeu um olhar insistente em sua direção. Olhou no vidro de proteção do motorista e viu o homem olhando-a de uma forma muito estranha. Ele a mirava. Um olhar de intimidar, dar medo, desconforto, mal estar. Sentiu enjoo. Sentiu que um pedaço de era arrancado. Tudo seguido de um sorriso mal feito, de canto de boca.
Desviou a atenção para a rua. Encostou-se no banco deixando todo o seu peso acomodar-se no macio Ela olhava pela janela quando sentiu um ar quente em seu pescoço. Olhou para trás e... Estranho! O sujeito olhava a janela. “Ele acomodou-se tão rápido. Estou ficando louca?”. Teve medo.
“Oi motorista! Hoje o dia foi cansativo, hein?!”, disse uma senhora ao subir as escadas do ônibus com dificuldade. A idade, certamente. Sentou-se do outro lado do corredor, acomodou-se, sorriu! Estava finalmente a caminho de casa.
O motor ronca e o carro começa a andar.
A moça olhou mais uma vez pelo vidro de proteção do motorista e viu o mesmo olhar a encarar os seus. Gritar? Por que se ele não fizera nada de mal, efetivamente? Mas ela sentia medo, enjoos.
Subindo a rua do centro da cidade, sentiu que o sinal vermelho nunca demorou tanto em sua vida. “Gente, por que não fui a pé?”, refletiu consigo mesma.
“O ponto está chegando, moça! É o próximo”, gritou o motorista, despertando a garota de seus medos e dando a ela esperança. “Obrigada, senhor!”.
Levantou-se com pressa. Pegou a mochila e a colocou nas costas como se estivesse leve. De onde surgira aquela força? Agarrou-se ao cano de segurança do carro, deu sinal e esperava impaciente o ponto chegar.
“Motorista, meu bem, obrigada! Desço junto com a moçinha aqui!”, disse a senhora que entrara depois do sujeito de olhos ameaçadores.
“Meu bem” – sussurrou a senhora de idade – “Não vou descer junto contigo. Apenas vim te ajudar. Olhe atrás de você”. A garota olhou e novamente viu o sujeito que lhe dava enjoos e, por sinal, ele lhe causara outro com o olhar ameaçador e o sorriso mal feito, de canto de boca. “Ele não é bom! Sinto isso! Grite ao motorista que viu o carro do seu pai na esquina, antes do ponto mesmo, e peça que ele abra a porta para que você possa sair antes. Tentarei segurar o homem aqui. Grave bem o rosto dele e, qualquer coisa, fuja o mais rápido que puder. Vá! Grite!”
Sem perder tempo a moça obedeceu a senhora: “Motorista, meu pai está ali na esquina! Abra para mim, por favor?”, “Sem problemas moça, que sorte, hein?!”, retrucou.
Desceu rapidamente, creio que até pulou o último degrau direito para a calçada. Passou atrás do ônibus e correu atravessando a rua. Só parou quando percebeu que o sinal abriu, o ônibus seguiu e ninguém a seguia. Só então, respirou.
Sentou-se na calçada mesmo e chorou. O estômago queria jogar para fora toda a sensação ruim daquele péssimo encontro. Teve a sensação de que era um pedaço de carne e seria devorada a qualquer momento, crua. As pernas bambeavam.
Viu uma luz forte. Seu ônibus. O que a levaria direto para casa. Deu sinal, ele parou, ela subiu. Motorista que conhecia e passageiros com caras mais familiares. Sentou-se no fundo. Estava mais perto de casa. Mais longe do olhar intimidador e do sorriso mal feito, de canto de boca.

Daquele dia em diante, em seus piores pesadelos, encontrava o maldito olhar e o sorriso mal feito, aquele de canto de boca, que lhe dava enjoos. 

Crônica: Priscila Garcia

Imagem retirada da internet